quinta-feira, 16 de junho de 2011

Tatins na paisagem salgada da Bretagne


No fim do ano de 2002, uns meses depois de me instalar na Côte de Légende, oeste da França, estava desolado, acho que com depressão, devido à mudança e às condições do vilarejo no qual fui morar - um lugar de 1 mil habitantes, chamado L’Aber Wrach (no departamento da Bretagne/ foto acima).
Me lembro que fazia uns bicos no Centre de la Mer, um espaço de estudos do mar, na costa, ao lado de Brest, eu e Yann Danjou, meu companheiro de aventuras, na época. Uma das únicas coisas que me consolavam naquela geografia esquisita eram os jantares, as recepções feitas para os hóspedes. Era a primeira vez que entrava numa cozinha profissional, na França.

No Natal do mesmo ano, Solange, a patronne local (não me lembro mais seu sobrenome, desolée, madame), me chamou para fazer o prato principal da festa dos funcionários. Fiz um filé de porco recheado com ameixas e maçãs, e pensei em fazer um pudim de leite como sobremesa.
Ela aprovou o cardápio principal, mas disse que a sobremesa era por sua conta. Na noite da festa, apareceu com diversas caixas de tarte tatins individuais e congeladas, compradas no Metro – atacadão que é a salvação dos restaurantes franceses (um dia falo sobre este lugar, que fornece produtos para o bistrô podre da esquina às casas estreladas no Michelin). Torci o nariz quando vi as caixas, achei meio absurdo comprar aquela torta rústica congelada, mas, à medida que madame as colocava, uma a uma, no forno, sentia o cheiro das maçãs, manteiga, do caramelo tomarem o ar.
No fim das contas, a sobremesa foi servida com sorvete de baunilha natural e ficou uma delícia. Era bem molhadinha e a massa era um biscoito sablée crocante. Bem, este post é para dizer que tatin congelada é possível e pode ficar boa. Desde que bem condicionada, do contrário o gosto de manteiga rançosa toma conta da sobremesa (já comi tatins com gosto de ranço em restaurantes de SP).
Quando criei o cardápio do Le Patio Gourmand - pequeno restaurante à beira-mar, na aldeia citada acima, onde trabalhei com Yann Danjou, durante dois longos anos - colocamos estas tortas no cardápio. Congeladas e compradas no Metro. Eram uma delícia e viraram sucesso da casa, desde sua abertura, em fevereiro de 2003.

Servia as tortas com uma colherada de caramelo com leite, estilo toffee, e uma bola de sorvete de baunilha, como aquele comprado por Solange, uma francesa clássica, apreciadora da boa mesa, que, aliás, acabou virando nossa cliente semanal, período no qual nunca me "tutuaiou", tratando-me sempre na segunda pessoa do plural. Ela adorava minha torta com um ponto extra de açúcar. Sempre elogiava, pedindo que eu aparecesse no salão.  
Durante dois anos, enquanto o restô e o sonho duraram, esta torta congelada foi minha sobremesa diária. Me lembro de adoçar a vida assim, na paisagem dura e definitivamente salgada, com tempestades de ventos de até 200 km/h, que traziam o sal do mar para dentro de nossas casas, do restaurante. Foi o período da minha vida mais salgado, mas também o momento em que mais comi tatins.

Um comentário:

  1. Puxa... como a vida é louca. estava fazendo pesquisa no google sobre o que aparecia com meu nome e acabei aqui lendo seu texto. Como sempre bem escrito; preciso te ler mais
    mil beijos

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